Assinada em 2008, a Estratégia Nacional de Defesa (END) prevê o reaparelhamento
das Forças Armadas do país em busca de desenvolvimento e projeção internacional,
mirando a conquista de um assento permanente no Conselho de Segurança da
Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, poucas medidas previstas no
decreto tiveram avanços desde então.
O Exército, que possui o maior
efetivo entre as três Forças (são 203,4 mil militares), está em situação de
sucateamento. Segundo relato de generais, há munição disponível para cerca de
uma hora de guerra.
O G1 publica, ao longo da semana, uma série de
reportagens sobre a situação do Exército brasileiro quatro anos após o decreto
da END, assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foram ouvidos
oficiais e praças das mais diversas patentes - da ativa e da reserva -, além de
historiadores, professores e especialistas em segurança e defesa. O balanço
mostra o que está previsto e o que já foi feito em relação a fronteiras, defesa
cibernética, artilharia antiaérea, proteção da Amazônia, defesa de estruturas
estratégicas, ações de segurança pública, desenvolvimento de mísseis, atuação em
missões de paz, ações antiterrorismo, entre outros pontos considerados
fundamentais pelos militares.
O Exército usa o mesmo fuzil, o FAL,
fabricado pela empresa brasileira Imbel, há mais de 45 anos. Por motivos
estratégicos, os militares não divulgam o total de fuzis que possuem em seu
estoque, mas mais de 120 mil unidades teriam mais de 30 anos de
uso.
Carros, barcos e helicópteros são escassos nas bases militares. O
índice de obsolescência dos meios de comunicações ultrapassa 92% - sendo que
mais de 87% dos equipamentos nem pode mais ser usado, segundo documento do
Exército ao qual o G1 teve acesso. Até o início de 2012, as fardas dos soldados
recrutas eram importadas da China e desbotavam após poucas lavadas.
A
Estratégia Nacional de Defesa elencou entre os pontos-chave a proteção da
Amazônia, o controle das fronteiras e o reaparelhamento da tropa, com o objetivo
de obter mobilidade e rapidez na resposta a qualquer risco. Defesa cibernética e
recuperação da artilharia antiaérea também estão entre os fatores de
preocupação.
Um centro de defesa contra ataques virtuais começou a ser
instalado pelo Exército em 2010, em Brasília, mas ainda é enxuto e não conseguiu
impedir ataques a uma série de páginas do governo durante a Rio+20, em junho
deste ano.
O Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron),
iniciativa que busca vigiar mais de 17 mil quilômetros de divisas com 10 países,
começará a ser implantado ainda em 2012, com um teste na fronteira do Mato
Grosso do Sul com Paraguai e Bolívia.
Segundo o general Walmir Almada
Schneider Filho, do Estado-Maior do Exército, a Força criou 245 projetos para
tentar atingir os objetivos da Estratégia Nacional de Defesa. Ele afirma que os
recursos, porém, chegam aos poucos.
Nos últimos 10 anos, a percentagem do
Produto Interno Bruto (PIB) investido em defesa gira em torno de 1,5%, segundo
números do Ministério da Defesa - em 2011, o valor foi de R$ 61,787 bilhões.
Durante a crise econômica, entre 2003 e 2004, o índice chegou a 1,43%. O maior
percentual foi registrado em 2009, quando 1,62% do PIB foram destinados para o
setor.
Em 2012, o Exército receberá cerca de R$ 28,018 bilhões, mas 90%
serão destinados ao pagamento de pessoal. Desde 2004, varia entre 9% e 10% o
montante disponível para custos operacionais e investimentos.
A ideia do
ministro da Defesa, Celso Amorim, é elevar gradativamente os gastos com defesa
para a média dos demais países dos Brics (Rússia, Índia e China), que é de 2,4%.
Segundo afirmou em audiência no Senado, o objetivo é fazer o Brasil ter maior
peso no cenário internacional.
"Nós perdemos nossa capacidade
operacional, sabemos dessa defasagem. A obsolescência é grande. Por isso, um dos
nossos projetos busca a recuperação da capacidade operacional. Até 2015, devemos
receber R$ 10 bilhões só para isso", afirma o general Schneider Filho,
responsável pelos estudos da END no Estado-Maior do Exército.
Falta
munição
Dois generais da alta cúpula, que passaram para a reserva
recentemente, afirmaram ao G1 que o Brasil não tem condições de reagir a uma
guerra. "Posso lhe afirmar que possuímos munição para menos de uma hora de
combate", diz o general Maynard Marques de Santa Rosa, ex-secretário de
Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da
Defesa.
"A quantidade de munição que temos sempre foi a mínima. Ela quase
não existe, principalmente para pistolas e fuzis. Nossa artilharia, carros de
combate e grande parte do armamento foram comprados nas décadas de 70, 80.
Existe uma ideia errada de que não há ameaça. Mas se ela surgir, não vai dar
tempo de atingir a capacidade para reagir", alerta o general Carlos Alberto
Pinto Silva, ex-chefe do Comando de Operações Terrestres (COTER), que coordena
todas as tropas do país.
"Nos últimos anos, o Exército só tem conseguido
adquirir o mínimo de munição para a instrução. Os sistemas de guerra eletrônica
(rádio, internet e celular), a artilharia e os blindados são de geração
tecnológica superada. Mais de 120 mil fuzis têm mais de 30 anos de uso. Não há
recursos de custeio suficientes", diz Santa Rosa. Ele deixou o Exército em
fevereiro de 2010, demitido por Lula após chamar a Comissão da Verdade, que
investiga casos de desaparecidos políticos na Ditadura, de "comissão da
calúnia".
Segundo o Livro Branco, documento que reúne dados sobre a
defesa nacional, o Exército possui 71.791 veículos blindados, a maioria deles
comprados há mais de 30 anos. Apenas um é do modelo novo, o Guarani, entregue em
2012 e que ainda está em avaliação. Um contrato inicial de R$ 41 milhões foi
fechado para a aquisição dos primeiros 16 novos carros de combate. No último dia
7, um novo contrato foi assinado para a aquisição de outras 86 viaturas Guarani,
ao custo de R$ 240 milhões.
"Nenhuma nação pode abrir mão de ter um
Exército forte, que se prepara intensivamente para algo que espera que nunca
ocorra. A população tem que entender que é preciso ter essa capacidade ociosa,
sempre, para estar pronto para dar uma resposta se um dia for necessário",
defende o general Fernando Vasconcellos Pereira, diretor do Departamento de
Educação e Cultura do Exército.
Riscos e ameaças
Para saber quais
equipamentos, tecnologias e armas precisam ser compradas e que outras mudanças
são necessárias, o Exército criou o Grupo Lins, que reúne uma equipe para prever
cenários de conflitos ou crises - internos ou externos - em que a sociedade e os
políticos possam exigir a atuação dos militares até 2030.
O objetivo é
antever problemas, sejam econômicos, sociais, de segurança pública ou de
calamidade, e saber quais treinamentos devem ser dados aos soldados até
lá.
Nesses cenários, a Amazônia e as fronteiras estão entre as maiores
preocupações. O texto revisado da Estratégia Nacional de Defesa, entregue pelo
governo ao Congresso Nacional em 17 de julho, destaca "a ameaça de forças
militares muito superiores na região amazônica".
Para impedir qualquer
ataque, o Exército prepara o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras
(Sisfron), que, através de um conjunto de sensores, radares e câmeras, permitirá
a visualização de tudo o que ocorre nas fronteiras em tempo real. Os
equipamentos facilitarão a repressão ao tráfico de drogas e armas, ao
contrabando e aos crimes ambientais. A previsão é de que o sistema esteja
totalmente operando em 2024.
O alto valor que o governo pretende passar
para o Sisfron - R$ 12 bilhões até 2030 – movimentou o mercado nacional e fez
com que empresas se unissem buscando soluções para vencer a licitação em
andamento. Entre as interessadas estão Odebrecht, Andrade Gutierrez e Embraer,
que fizeram parcerias com grandes indústrias do setor.
Para o historiador
e criador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), Geraldo Cavanhari, o Exército está em transformação e precisa se
adequar para os inimigos do futuro. "O inimigo, seja interno ou externo, agora
está extremamente bem armado. Por enquanto, não temos ameaças explícitas, mas
temos que cuidar da nossa casa e estar preparados para responder, caso seja
necessário".
O general da reserva Carlos Alberto Pinto Silva diz que o
problema continua sendo o orçamento. "Um coronel argentino me disse que eles
aprenderam na guerra nas Malvinas que, se não existe a capacidade mínima de
responder, não dá tempo para adquirir. Não adianta chorar depois",
afirma.
Mudança de percepção
Estudioso da área, o professor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Ronaldo Fiani entende que a
abertura democrática e a criação do Mercosul provocaram mudanças na forma da
população conceber a proteção do país, Consequentemente, foram feitos cortes nos
investimentos militares. "O fim da ditadura e a união dos países latinos fez com
que houvesse enfoque em integração, com diminuição do investimento na área
militar", explica.
Burocracia, crises financeiras e déficit fiscal também
são entraves para maior disponibilidade de recursos. "A única forma dos
militares receberem mais investimentos é se integrando à pesquisa acadêmica e às
empresas, como ocorre nos países desenvolvidos", diz Fiani.
O general
Walmir Almada Schneider Filho concorda com o professor. "No primeiro mundo, o
povo tem a mentalidade de que defesa e desenvolvimento caminham juntos e
complementam-se. Um impulsiona o outro. Nós não queremos chegar neste patamar
[de país voltado para a guerra], mas criar uma mentalidade de defesa, para que o
povo discuta o assunto", diz.
"Eu acho que a redução dos investimentos
tem relação com o período militar e a própria mentalidade da população, que vê
como melhor alternativa aplicar os recursos em outro setor fundamental, como
saúde, educação, etc", acrescenta Schneider Filho.
"Não há um palmo sobre
o território brasileiro que não esteja sob a responsabilidade de uma tropa do
Exército. Somos a organização mais presente em todo o território e que tem meios
de chegar o quanto antes em qualquer situação. Por isso, assumimos cada vez mais
responsabilidades e temos que ter capacidade para atuar em situações de
emergência", diz o general José Fernando Yasbech, também do Estado-Maior do
Exército.
Yasbech se refere aos múltiplos empregos do Exército em ações
civis dentro do país, como as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO),
como a Constituição determina o emprego militar em casos graves de segurança
pública. Além disso, o militares são convocados para o apoio em caso de
enchentes, abertura de estradas, construção de pontes, distribuição de ajuda
humanitária, apoio em eleições, combate à dengue e à aftosa, entre
outros.
PROTEGER
Em 2012, mais uma linha de atuação está sendo
aberta: os militares serão responsáveis pela defesa e proteção de
infraestruturas estratégicas do país, como hidrelétricas, usinas nucleares,
indústrias essenciais e centros financeiros e de telecomunicações a partir da
criação do projeto Proteger. O programa terá recursos na casa dos R$ 9,6 bilhões
e reunirá órgãos públicos dos estados e informações necessárias para prevenir,
conter ou reprimir ataques ou acidentes nesses locais.
São mais de seis
mil infraestruturas estratégicas existentes no país, sendo que 364 estão entre
as mais críticas, conforme levantamento do Gabinete de Segurança Institucional
(GSI) da Presidência da República.
"O trabalho será tanto no sentido de
prevenir acidentes nessas estruturas como também de identificar riscos e,
eventualmente, contê-los", diz o general José Fernando Yasbech, que responde
pelo projeto.
O trabalho começará no Paraná, com a implementação de um
centro de ação conjunta com polícia, Bombeiros e Defesa Civil para defender a
Usina de Itaipu.
"O reaparelhamento das Forças Armadas vai além de apenas
dizer que um país pacifista está tomando uma atitude de se tornar mais bélico. O
emprego dos militares tem sido bem diferente nos últimos anos, seja em ações de
defesa civil, de segurança pública, de apoio aos órgãos estaduais. E isso
demanda alterações estruturais profundas na política, na mentalidade da
população e em investimentos", diz Iberê Pinheiro Filho, mestre em Relações
Internacionais e estudioso da Estratégia Nacional de Defesa.
Procurado
para comentar a atual situação do Exército, o ex-ministro de Assuntos
Estratégicos Roberto Mangabeira Unger, que escreveu o texto da Estratégia
Nacional de Defesa, disse que se considerava "moralmente impedido de falar"
devido à "relação íntima e especial com as ações e tarefas de que tratará a
reportagem".
"Direi apenas o que escrevi na dedicatória de um livro que
dei à biblioteca do Exército, por mãos do general que a comanda: o Exército
brasileiro é a mais importante instituição do Brasil", afirmou Mangabeira Unger
ao G1.
Já o ex-ministro da Defesa Nelson Jobim, que também assinou a END
em 2008, disse que não iria comentar a situação, pois não ocupa mais o
cargo.
Tahiane Stochero
http://www.defesanet.com.br/terrestre/noticia/7217/Sucateado--Exercito-nao-teria-como-responder-a-guerra--dizem-generais
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