Por que, apesar de tudo, o Brasil deu
certo? Indaga em certo momento Laurentino Gomes, autor da trilogia 1808, 1822,
1889. Sem dúvidas, é uma pergunta que nos causa inquietação. Afinal, teria
mesmo o Brasil dado certo? Ele justifica e discorre sobre o "apesar dos
pesares" já que somos um dos países mais pujantes do mundo, com uma
população numerosa que, em toda a sua história, possui fatos que poderiam nos
levar a uma realidade bem diversa da atual.
Cita, por exemplo, o que é consenso
entre os estudiosos: que se não fosse a vinda de Dom João VI para o Brasil,
estabelecendo um poder central, não haveria a unidade territorial que
conhecemos hoje, mas, sim, a existência de pelo menos quatro países de língua
portuguesa devido aos vários movimentos separatistas. Além disso, uma das
abordagens de Gomes é de que o Brasil adquiriu seu status geopolítico econômico
e social a despeito de uma Cultura passional, originária e retrógrada que
explica o famoso "jeitinho brasileiro". Infere-se que o Brasil “deu
certo” perto do que poderia ser em uma perspectiva mais pessimista, mas sabemos
que está muito longe do que poderá vir a ser.
Esse entendimento exige a compreensão
da própria formação do povo brasileiro, resultante do entrechoque de etnias,
com perspectivas opostas entre dominados e dominadores. E é sobre essa cultura
de origem predominantemente lusófona, latina, "miscigenada" com a dos
índios e a dos africanos, a qual adiciona-se a dos demais imigrantes, que está
assentado todo o nosso ordenamento jurídico positivado, escrito. E uma de suas
características mais marcantes é ser passional ao ponto de a vontade do
indivíduo pretender sobrepujar a eficácia da lei, desafiando-a em detrimento de
toda uma coletividade ou do direito de outrem. Platão há milênios já pregava a
lei como disciplinadora das paixões, não como refém das conveniências pessoais
egoístas e absurdas que procuram subjugar a supremacia do interesse público.
Assim, posso afirmar, existem dois
paralelos empíricos observáveis. Um, no qual quanto mais a cultura esteja
assentada em aspectos passionais, menor será a aderência às leis. Outro, ao
contrário, revela uma sociedade mais pragmática, onde a eficácia normativa é
regra, não exceção. Assim estaremos diante de comunidades com maior ou menor
grau de juridicização de atos e fatos. Então, diferente dos latinos, seriam os
nórdicos, anglo-saxões, germânicos, judaicos e nipônicos culturas menos
passionais, os quais seus Índices de Desenvolvimento Humano, geralmente mais
elevados, refletem maior respeito às leis, aos modos e aos costumes? Talvez o
equivalente a “menos passional” seja “mais educação”, afinal não falo na
condição de nenhuma autoridade sociológica, apenas de singular observador.
Curioso, quase sem exceção,
representam países que passaram por grandes flagelos e privações em suas
histórias, referentes às guerras e calamidades sofridas. Ou, ainda,
estariam esses povos mais desenvolvidos aprendido com o passar dos tempos que
precisariam evoluir a sua cultura para saber que não existe salvação fora do
império das leis? Se todos, indistintamente, estão adstritos à mesmíssima
natureza humana, origem de todas as paixões, fico com essa hipótese.
O grande e preocupante problema,
talvez, esteja no fato de que – aqui no Brasil, na ausência de grandes catástrofes naturais e de guerras
nas quais tivéssemos que repelir invasores a nos saquear –, o brasileiro possa demonstrar uma
tendência para o autoflagelo, na medida em que alguns “se dão bem” às custas do
trabalho e do sofrimento de toda uma coletividade. E isso revelaria uma
tremenda falta de consciência nacional e, até, uma espécie de autofagia social
inconsequente.
Logo, assim como outros povos já
experimentaram desde a explícita barbárie medieval aos horrores da Segunda
Grande Guerra, e evoluíram para o mundo das leis e da civilidade, conservo a
esperança de que possamos superar a nossa velada barbárie contemporânea,
herdada da nossa origem escravocrata, sendo o fundamental desvelá-la em toda a
sua hipocrisia.
Não é novidade que hispânicos e
lusitanos hastearam as suas bandeiras no além-mar, numa colonização de
exploração para subjugar os povos conquistados e alienados. Assim aqui foi com
os patrícios portugueses, onde dessas cicatrizes ainda corre sangue a céu aberto
da maneira mais torpe, porque banalizável, na medida em que permanecem, ainda
que velados, os mesmos grilhões da escravidão de outrora. Ninguém quer ver com
a peneira a verdade que aos olhos cega tal qual o sol. Assumir de fato essa
herança, e reconhecê-la, é o primeiro passo para seguirmos o caminho da Itália
desenvolvida, exemplo de que nós, latinos, estamos ainda no processo evolutivo
para disciplinar nossa Cultura passional às Leis.
Essa exposição não tem por objetivo
ser uma crítica absoluta, pois essa mesma cultura que revela maior distância
entre o “ser” e o “dever ser” tem muitos outros predicados
fascinantes, e que nos identifica, os quais, particularmente, sinto orgulho.
Somos um povo alegre, batalhador e com vocação para a paz, situados no mais belo
e rico recanto do planeta. Talvez isso explique o porquê do Brasil “ter dado
certo”, nas palavras de Gomes.
No entanto, para que verdadeiramente
possamos dizer que o Brasil deu certo – não sob a ótica pessimista do citado
autor, mas sob a nossa, otimista –, cabe a nós, assumirmos a responsabilidade
dos enormes desafios que se apresentam no horizonte, não havendo outra
alternativa que não lutar para tornar essa Terra Brasilis das paixões de outrora num lugar cada vez melhor para nós
e para as futuras gerações, na busca incansável de uma maior conscientização e
educação do povo, que conduz a sua efetiva participação, pressuposto da
evolução cultural.
E não tem outro jeito! Pois, por mais
odiosa que possa ser a percepção de muitos acerca da política, hoje ela reflete
exatamente a falta dessa participação popular mais consciente. Hemos de
aprimorá-la para nos reconhecermos como uma Nação dos trópicos plenamente
desenvolvida, mais justa, com um povo apaixonante, mas igualmente sabedor da
importância do respeito efetivo à Constituição e às Leis que nos regem como
chave da verdadeira liberdade.
Por Mauro Rogério – Tenente Coronel
Aviador da Força Aérea Brasileira.
www.facebook.com/df.maurorogerio