Ainda surgiam notícias sobre o andamento da Operação
Leite Compensado, que identificou no Rio Grande do Sul um esquema de adulteração
de leite cru com ureia, quando uma nova denúncia desabou sobre o setor. Em
Goiás, foi descoberta uma quadrilha que furtava cooperativas e adicionava uma
mistura de água, sal e açúcar ao leite – que era vendido, na última etapa do
esquema, a laticínios ilegais. No caso gaúcho, 12 pessoas foram indiciadas pelo
Ministério Público, mais de 300 mil litros de leite foram apreendidos e três
marcas (Italaq, Líder e Mumu) tiveram de tirar seus produtos do mercado por
conterem formaldeído, uma substância cancerígena presente na ureia. Em Goiás,
sete pessoas foram presas. Os crimes são distantes e diferentes em tamanho e
método, mas expõem uma realidade única em todo o Brasil: as brechas do sistema
de fiscalização de alimentos. "As pessoas estão desacreditadas não só com a
cadeia do leite, mas também com o setor de alimentos do País. Passamos por uma
crise de credibilidade", afirma Paulo Fernando Machado, coordenador da Clínica
do Leite da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de
São Paulo (USP). "Se eu fosse um tomador de leite na França e visse uma notícia
como essa, não beberia mais leite do Brasil." Esse, e outros casos que surgiram
nas últimas semanas, mostrando os perigos a que os consumidores brasileiros
estão expostos quando se sentam à mesa, remetem à pergunta: afinal, os alimentos
consumidos no País são seguros?
Na família da fotógrafa mineira Adriana Gonçalves, 42 anos, a pergunta ainda
deixa um gosto amargo. No início de maio, eles compraram um suco da marca Del
Valle sabor goiaba e o consumiram no dia seguinte, dentro do prazo de validade.
Foram salvos de uma experiência mais traumática pelo hábito de nunca tomar nada
direto da embalagem. "Quando meu marido serviu a bebida para os meus filhos,
saiu uma coisa branca. Se as crianças estivessem sozinhas, com certeza teriam
ingerido." Adriana coou o conteúdo da caixa e entrou imediatamente em contato
com o Serviço de Atendimento ao Consumidor da Coca-Cola Brasil, dona da Leão
Alimentos, que produziu o lote do suco. "Os problemas acontecem, mas a empresa
tem a obrigação de informar o consumidor sobre os riscos e assumir a
responsabilidade pelas falhas", diz Adriana. Por meio de nota, a fabricante
informou que o caso é "pontual e isolado" e aparenta ser fruto da "formação de
bolor causada por perda de vedação da embalagem, provavelmente por impacto
durante o transporte ou armazenamento". Em sua busca de mais respostas e,
sobretudo, de uma mudança de conduta por parte da marca, Adriana postou uma foto
do suco contaminado no Facebook. Até o fechamento desta edição, a denúncia já
havia sido compartilhada mais de 300 mil vezes.
"A distribuição global de alimentos e a complexidade da cadeia produtiva
propiciaram um aumento na ocorrência de eventos e emergências relacionados à
inocuidade de alimentos", afirmou à ISTOÉ, em nota, a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). "A participação dos consumidores por meio de
denúncias e reclamações também vem crescendo." O problema apontado pela agência
se verifica em diversas cadeias produtivas. No caso dos produtos de origem
animal, por exemplo, há uma evidente falta de pessoal para dar conta do trabalho
de fiscalização. Segundo Wilson Roberto de Sá, presidente do Sindicato dos
Fiscais Federais Agropecuários (ANFFA), são apenas 3.307 profissionais para todo
o País. "O sistema está fragilizado e, sem dúvida, estamos correndo riscos
porque o produto que chega à mesa pode não ter passado pelos processos de
fiscalização", afirma. Outras organizações vão além e denunciam a falibilidade
da estrutura de inspeção. "No caso do alimento, a pior coisa que pode acontecer
é segmentar, porque ninguém carrega responsabilidade de nada", diz Roberto
Smeraldi, presidente da ONG Amigos da Terra, que vem denunciando falhas graves
na cadeia produtiva da carne. "O que você tem de fazer é exatamente o contrário:
rastrear e unificar o receituário em todas as fases da cadeia, de maneira que
aquele boi tenha nome, sobrenome e apelido." Smeraldi dirige sua crítica à
divisão das inspeções de produtos de origem animal entre as esferas federal,
estadual e municipal, o que permite que um produto recusado por estabelecimentos
de uma rede seja aceito em outras por conta da diferença de critérios e, também,
do rigor na fiscalização. "O Ministério da Agricultura nem sequer olha para um
terço da carne que chega à mesa dos brasileiros", diz. Segundo o relatório
"Radiografia da Carne no Brasil", publicado pela organização no início de 2013,
80% dos abatedouros que não estão sob controle do ministério apresentam
irregularidades.
O sistema tripartido foi criado em 1989 pela Lei 7889, mas há um decreto de
2006 regulamentando a aplicação da legislação e instituindo o Sistema Unificado
de Atenção à Sanidade Agropecuária (Suasa). O projeto, no entanto, apenas começa
a ser implantado pelo Ministério da Agricultura – a quem compete a fiscalização
de todos os produtos de origem animal e vegetal vendidos in natura, além das
bebidas alcoólicas e não alcoólicas. No caso dos produtos de origem animal, essa
central unificada foi chamada de Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de
Origem Animal (Sisbi), mas apenas cinco Estados já fazem parte do programa.
Outros 16 estão em processo de cadastramento.
A fragmentação também
acontece na divisão de responsabilidades entre o Ministério da Agricultura e a
Anvisa. Para Carlos Thadeu Oliveira, gerente técnico do Instituto de Defesa do
Consumidor (Idec), "não parece haver simbiose entre os órgãos de vigilância. A
Anvisa e as vigilâncias sanitárias locais não conversam com a Secretaria de
Defesa Agropecuária (SDA) do Ministério e menos ainda com os serviços estaduais
de inspeção". Essa falta de centralidade nos processos relacionados à segurança
dos alimentos produz casos como o da autorização, por parte do Mapa, de um
agrotóxico vetado por técnicos da agência em 2007 – a decisão foi reiterada pelo
comitê de assessoramento técnico criado para avaliar a infestação de lagartas em
lavouras de algodão e soja na Bahia, em março deste ano. O benzoato de
emamectina é considerado tóxico para o sistema neurológico. Segundo a Anvisa, o
uso de agrotóxicos não autorizados é responsável pela maior parte das
irregularidades encontradas nos alimentos de origem vegetal consumidos no
Brasil. De acordo com o último relatório do Programa de Análise de Resíduos de
Agrotóxicos em Alimentos, da agência, 30% dos produtos estão fora dos
parâmetros.
Essa situação não afeta apenas os consumidores, mas também os produtores e a
indústria, que se vê cada vez mais pressionada a aprimorar seus mecanismos de
autocontrole – o que exige mais investimentos e compromissos do setor privado.
"A indústria é quem coloca a marca no produto e, portanto, é responsável", diz
Paulo Fernando Machado. "Agora, para detectar essa fraude de adição de ureia no
leite, como aconteceu no Rio Grande do Sul, ela precisaria ter capacidade de
fazer uma análise específica. O procedimento é fácil e rápido, desde que você
tenha o equipamento necessário, mas ele é caro." Nilson Muniz, diretor-executivo
da Associação Brasileira da Indústria de Leite Longa Vida (ABLV), afirma que "a
indústria aplica todas as análises previstas na legislação e é a maior
interessada em receber a melhor matéria-prima". Ele também ressalta que o teste
para detectar o fomaldeído não fazia parte do conjunto de medidas obrigatórias,
já que esse tipo de adulteração não era registrado há mais de 20 anos (a análise
voltou a ser exigida em fevereiro de 2013, justamente por causa do crime).
Segundo Ênio Marques, da SDA, fazer com que as empresas assumam a tarefa de
garantir a qualidade de seu próprio produto é uma tendência dentro do Ministério
da Agricultura. Ari Crispin, coordenador de Programas Especiais do Mapa, afirma
que isso não significa o afastamento do poder público. "Trata-se de um
aprimoramento do sistema. Nós estabelecemos os limites e avaliamos o
comprometimento do empresário com essas metas", afirma. Outra figura que
precisará entrar na receita do ministério é o produtor, que muitas vezes
representa a ponta fraca do sistema. Carlos Thadeu de Oliveira, do Idec, ilustra
a situação. "Por ocasião de um teste que fizemos com 25 marcas de queijo minas
frescal, recebemos vários produtores pequenos. O que vimos é que eles não são
orientados corretamente sobre como fazer o controle, são ameaçados, tratados
como cachorros pelos fiscais", diz. Das 25 amostras coletadas, cinco estavam
contaminadas com coliformes fecais – todas faziam parte do Sistema de Inspeção
Federal.
Esse emaranhado de agentes e responsabilidades já passa fatura ao setor
exportador, cada vez mais cercado por barreiras sanitárias – ainda que a origem
de muitas delas esteja ligada a interesses políticos e econômicos de parceiros
comerciais do Brasil. Em 2011, o País recebeu 95 notificações do sistema de
vigilância sanitária da União Europeia, o Rapid Alert System, o que o coloca na
12ª posição na lista de países mais notificados pelo bloco. Em 2009, foram 84
alertas e, em 2010, 110. Atualmente, nove países seguem com embargos à carne
brasileira, por conta de um episódio de encefalopatia espongiforme bovina
(doença conhecida como "Vaca Louca"), no Paraná.
Do ponto de vista da saúde, não faltam motivos para cultivar a prevenção.
Entre 2008 e 2012, houve um aumento de 226% nos casos de intoxicações provocadas
por alimentos (leia quadro), conforme dados do Ministério da Saúde.
Nutricionista e técnica da associação de consumidores Proteste, Manuela Dias diz
que "os problemas ocasionados por alimentos contaminados por bactérias podem
variar de uma dor de barriga leve até a morte". Ela também ressalta que o
período de incubação da doença dura de horas até dias – o que dificulta a
identificação do produto contaminado. "No Brasil, o problema é completamente
subnotificado. Só acontece quando é um surto e acomete muitas pessoas." Apenas
um recall de produto alimentício foi feito no Brasil em 2012. Nos Estados
Unidos, no mesmo período, foram 80.
Um dos afetados pelo problema foi o aposentado José Barbosa da Silva, 63
anos. Ele foi parar no hospital com uma infecção estomacal depois de consumir
uma bebida de soja da marca AdeS em março deste ano, na mesma época em que a
empresa anunciou a contaminação de um lote do produto por soda cáustica. "Ele
tem o estômago sensível e, por isso, temos muito cuidado com tudo o que toma",
diz Luciano Barbosa da Silva, filho de José. "Naquela noite, ele comeu algo
muito leve e isso fez com que a gente descartasse, em um primeiro momento, a
possibilidade de intoxicação alimentar." Justamente por isso, a família não
guardou a caixa e o registro do lote do produto consumido pelo aposentado, o que
dificultou a busca por reparação. "Nós chegamos a acionar dois advogados, mas
nenhum quis levar o caso adiante, por se tratar de um embate com uma empresa
muito grande."
Judi Nóbrega, diretora do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem
Animal do Mapa, explica que é muito importante que a informação sobre esses
casos chegue aos canais formais de denúncia – Vigilância Sanitária e Ministério
da Agricultura –, com dados que permitam às autoridades identificar a empresa
implicada e o lote do produto. "A partir daí, podemos fazer uma fiscalização
para verificar a procedência da denúncia e as condições dos estabelecimentos.
Além disso, a ouvidoria do ministério gera relatórios que possibilitam programar
inspeções direcionadas." Mesmo recorrendo aos canais disponíveis e recebendo as
compensações devidas – como a troca do produto ou a devolução do dinheiro –, os
consumidores se sentem cada vez mais distantes da produção do alimento e, assim,
bastante vulneráveis. "Você fica traumatizado porque poderia ter acontecido o
pior", diz Luciano Silva. "A gente está falando de uma grande indústria, mas
imagine as pequenas. O governo precisa nos proteger."
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Bernardo Salce / Agencia i7
Foto: Orestes Locatel
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AGP
*Fontes: Sinan, Ministério da Saúde e Organização Mundial da
Saúde
*Fonte: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Ministério da Saúde,
Ministério da Agricultura